sexta-feira, 11 de março de 2022

::: Da lira ao delírio: um retrospectiva da produção artística paraisopolense em 2021 :::

A inexistência de um departamento independente de cultura não está sendo capaz de refrear o movimento criador dos artistas paraisopolenses. Os anos pandêmicos de 2020 e 2021 foram, do lado do poder público, anos de escassez de políticas públicas focadas, mas do lado dos artistas anos de reflexão, resistência política e criação. O projeto cultural, ou melhor a ausência de um projeto cultural nas mentes da extrema-direita no poder não tem força perante as correntes independentes e históricas da arte.

No ano passado publicamos no Jornal A Formiga um texto em que analisamos as produções locais referentes à 2020. Naquele ano, os artistas locais, em isolamento devido à pandemia do novo coronavírus, criaram dezenas de obras que, certamente, auxiliaram no plano afetivo a população a suportar aqueles momentos de incerteza e perigo.

Agora, para não perder o fio da meada, e dar o merecido valor ao conjunto de artistas de Paraisópolis, e não apenas para este ou aquele, publicamos uma retrospectiva da produção artística paraisopolense em 2021, ano em que, apesar da continuidade da pandemia, o horizonte para uma vida renovada se reabriu com a vacinação em massa.

Contemplado pela Lei Aldir Blanc, em janeiro do ano passado Iago Dias apresentou o documentário "Lira trajetória e musicalidade", sobre a trajetória da Corporação Musical Lira Cônego Benedito Profício, e Beth Ribeiro presenteou a cidade e o mundo com o projeto "Minutos de Música", série realizada para compartilhar o trabalho remoto conduzido pela pianista junto aos seus alunos e alunas da "Escola Minas de Música".
O dia 15 de janeiro de 2021 foi, certamente, um dos dias mais tristes da história do Brasil. Naquele momento, o número de mortos pela pandemia ultrapassava diariamente a casa dos milhares e o país estava completamente dominado por discursos e atos nazi-fascistas, por negacionismos da gravidade da pandemia e por fake news assassinas que defendiam cloroquina e ivermectina no lugar da vacina. Apesar da situação desesperadora, a parcela da população, incluindo a classe artística, pelo menos a que não fora tragada pelas redes do mal, marchava disposta a desfazer o império da mentira, do culto à morte e à ideologia do "novo normal" que, aliás, nunca existiu e nem existirá, pois nunca houve normalidade neste país de exceção.
Naquele momento asfixiante o "Studio Help" de Paraisópolis, o selo "Outono Discos" de Cambuí e Erick Trip de Pouso alegre conectados à distância auxiliavam-nos na travessia (que seria e será ainda longa) e lançavam o single "Tem Dias / Oi Zé" do "working class hero" paraisopolense Mateus Cursino que, no sufoco da pandemia e das horas de trabalho, nos trouxe um pouco de ar, justo quando sentíamos que morríamos todos um pouco com as crianças, adultos e idosos asfixiados em Manaus pela política genocida do desgoverno federal.
Dias depois, no aniversário de emancipação político-administrativa de Paraisópolis, a TV Paraíso fez uma live especial com clipes de artistas locais, dando nos, através de uma retrospectiva histórica, um pouco mais de ânimo para superar com vistas ao futuro aquele presente ameaçador em que o vírus avançava sem trégua. Três dias depois, fomos agraciados com a composição "Dobrado Zé Barca" de Vinícius Serpa e Renan Castro.
No dia 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans, assistimos o documentário de Igor Yves e Gabriel Couto "Logo eu que nem era humana", contando a história de quatro mulheres transsexuais paraisopolenses. No documentário, as entrevistadas relatam suas vidas e relembram momentos emblemáticos.
No texto "Fim do mundo, fim de ano e uma breve análise das criações artísticas paraisopolenses em 2020", publicado em janeiro de 2021 na última edição do Jornal A Formiga, escrevi "acompanho com atenção as produções musicais de Samira Prado que deve lançar em breve um conjunto de canções autorais". No dia 17 de fevereiro a previsão se tornou real e a artista paraisopolense lançou ao tempo e ao vento o vídeo da canção "Tempo avoa". Com imagens psicodélicas e bucólicas do Paraíso, o clipe convida-nos a uma viagem de (re-)encontro com as criações da natureza.
Fevereiro não teve Carnaval, mas nas redes houveram ao longo do mês movimentações de blocos de afetos estéticos. Murilo Teixeira Carvalho lançou a dançante e bem humorada "Pussycard". E Gabriel Gomes lançou seu primeiro trabalho autoral, o clipe de "Vazio" refletindo sobre um assunto bastante presente em nossa cidade: a depressão.
Em tempos de dilapidação de bens inventariados e em processo de tombamento, refletir sobre a preservação do patrimônio histórico é importante para que certas violências do passado não se tornem regra e barbárie no presente e no futuro. Neste sentido, a veiculação do documentário "Preservando a História" de Mariana Moura dá-nos lições fundamentais.
Em março de 2021, o garoto João Vitor Silva, aluno da Academia de Dança Ândrea Falsarella foi aprovado na Escola de Dança Bolshoi Brasil, única filial do famoso Teatro Bolshoi da Rússia.
No mês seguinte, os MCs Cristaniel & Mayronzzz lançaram o emotivo single "Baby fala nada". No mês seguinte, o guitarrista e produtor Márcio Matos iniciou uma série vídeos caseiros interpretando canções compostas por artistas da cidade. A primeira leitura foi de "Seu Cheiro" composição de Vinícius Pessoa.
Entre as flores de maio, o documentário Embaixada Três Pontana contou a história da criação de um ponto de cultura na área rural de Paraisópolis. Segundo a sinopse do doc "motivado pela paixão pela poesia musical do Clube da Esquina e interessado em compartilhar a boa música com a vizinhança e as cidades próximas, um produtor rural construiu um palco em suas terras e promove shows que não cobram entrada do público e já recebeu grandes nomes da música como Toninho Horta".
No 13 de maio, o artista visual Diego Santos através do trabalho "Subterfúgio Obscurece" delineou com seus traços a Senhora Lena e junto dela elementos da cultura afrobrasileira que com seus ritmos, sabores, poéticas e saberes fez da rosa Rosa de Ouro. Rosa de Ouro que é pedra preciosa fundamental, símbolo máximo cultural, expressão quilombola e ancestral em plena região central.
No graffiti, os eflúvios da feijoada, mas poderia ser os da sopa saborosa, servida pela Lena e também pela Dona Cecília, durante minha infância na EScola Estadual "Eulália Gomes de Oliveira", encontra os nomes dos abolicionistas Luís Gama, Adelina Charuteira, André Rebouças, Maria Firmina, José do Patrocínio e Anastácia. Neste trabalho dedicado à Lena e naquele dedicado a Zé Barca, Diego Santos nos lembra de algo fundamental, que nenhum subterfúgio do poder estatal pode obscurecer: a presença viva e ancestral de um futuro sem preconceitos e sem desigualdades.
Ainda nas artes plásticas, não podemos esquecer o trabalho de Dimas, Alexandre Ribeiro DantasLeonardo WilborAna Beatriz De Castro Gennari e D'Aquino Noronha. No universo dos quadrinhos e das tirinhas, Fabrício Gradim, a mente por trás da Neura Comics , continuou focado em sua produção, transitando com humor por nossas múltiplas neuroses humanas.
O trap, que agora torna-se mais popular na cidade do vento, já circulava pelo underground, sintonizado pelas antenas da vanguarda. Em maio de 2021, a faixa "City do Vento" de NZK e LecN era veiculada pelo coletivo ParcGang no youtube.

Para além das montanhas azuis. No dia 28 de maio, ouvimos Paraisópolis em terras argentinas. O programa "Brasil Sin Escalas" da FM Universidad de La Plata 107.5 da Argentina recebeu para uma entrevista Mateus Cursino do Pedro Bala e os Holofotes que falou sobre a trajetória da banda paraisopolense, comentou a repercussão do primeiro álbum lançado em 2020 e anunciou um novo compacto para 2022, em fase de pré-produção.

Em junho, Mayron ZZZ & Cristaniel, contando com Daniel Chimp na produção e Guilherme Neo nas filmagens, tomaram a cena com "Brisas Internas". A faixa viria a integrar o álbum “Filosofia de Esquina“, lançando no dia 27 de junho. Na ocasião anotamos: "nestes "tempos difíceis" a música é o que ameniza a dor. E a música em Paraisópolis, apesar de tantos pesares, tem cumprido seu papel social, através de seus artistas, em todos os seus cantos e encantos, em seus becos, ruas e esquinas, nos espaços ancestrais e nas redes virtuais. Salve #QZN e todos os bairros em conexão rítmica e poética, e lembremos sempre da querida Professora Tereza Paulino, que antes de partir, fez questão de deixar "um brinde à música e a cultura do gueto"!
O projeto Inutensílio, fundado pelo Mc e Graffiteiro Diego Dais Souza, lançou em julho o single "Capitão do Capital". O som conta com beat do paraisopolense Daniel Chimp e produção geral de Iago Dias da Id produção musical. A letra crítica, carregada de técnica e trocadilhos, expõe o Brasil atual em todas as suas complexidades e destruições promovidas pelo governo fascista de jair "o medíocre" bolsonaro. "Inutensílio" destaca, com bom humor e irreverência, o caos que o país se encontra.

Em agosto, na "Praça do Centenário", o RAP paraisopolense (re-)afirmou no clipe de "Originow" sua potência cultural, sua criatividade coletiva e sua irreverência, gravado enquanto os homens (pretensamente) sérios do poder, encenadores de seus deveres de burocratas para inglês ver (e talvez comprar), continuavam cegos para o movimento do vento e dos inventos éticos e estéticos da nova geração.

Nas vésperas da primavera, o cantor paraisopolense Cristaniel, atualmente vivendo em Budapeste, capital da Hungria, lançou nas plataformas digitais o single "Ciclos". Neste trabalho, Cristaniel, conhecido por suas produções no Rap, flerta também com a Soul Music e com o Rhythm and blues.

Também em setembro Márcio Matos oficializou o projeto Matos records para operar como gravadora e selo fonográfico, visando parceria com artistas locais e da região. No mesmo mês, a dupla Ney Viola Giovanni lançou o clipe "Seu Garçom", com participação do ator, humorista e radialista Doni Márcio Guedes.
Outubro foi a vez da poesia ressurgir com a obra digital "Sós Nós", escrita em parceria pelo poeta, jornalista e filósofo JGeraldo e pela poeta L. E, dois meses depois, o Amor, tão esquecido, retornou digital, e talvez eternamente, na obra homônima.

Em novembro, Márcio Matos lançou o single instrumental "Horizonte", a cantora Simone Santos recebeu em seu belo jardim o artista Felipe Ricotta em sua turnê pelo Brasil, e ZZZ lançou os singles Blunt zero" (Prod. DJ Batatakila) e "Novos Ventos" (Prod. Adrbeats). No mesmo mês, o quarteto Forró a Mineira se apresentou na sexta edição do "Festival Revelando São Bento". A apresentação, gravada no Belvedere Serrano, que é um dos pontos turísticos mais visitados de São Bento do Sapucaí, foi emoldurada por um mar de montanhas da Mantiqueira. Dias depois, já em Gonçalves, Alfredo Paiva, membro do Forró à Mineira, fez uma apresentação solo de acordeon no "8 Festival de Gastronomia e Cultura da Roça".

Ainda em 2021, a peça musical "Fases" composta pelo músico paraisopolense, Tony Moreira, atualmente vivendo nos EUA, fez 10 anos. Digitando "Fases by Tony Moreira" no youtube você pode ouvir a peça sendo executada pelo "Pierrot Lunaire ensemble".

A título de homenagem pelo conjunto da obra, lembro da trajetória do radialista e compositor Braz Aparecido com dezenas de composições gravadas por importantes duplas da música caipira e sertaneja brasileira.

Não poderíamos deixar de registrar as movimentações no samba e no pagode, através do Sindicato da Cachaça, do Grupo Deixa Acontecer e do cantor Chris Silva.

E antes de adentrar 2022, ainda no campo musical, destaco o trabalho de Sarita Barros que, neste últimos anos, se conectou com importantes causas sociais e humanitárias. A arte como medicina ... da alma.

Novos ventos de 2022
2022 nem bem começara e, apesar da paralisia burocrática comi$$ionada e da sua atestada inépcia em promover projetos de envergadura para além dos círculos privilegiados, a arte, em sua autonomia, continuou a ressoar em mil alto-falantes.

Se tem algo do que, indubitavelmente, os paraisopolenses podem se orgulhar é da quantidade de talentos no campo da música. Do erudito ao popular, do rock ao pop, do maracatu ao rap, do clássico ao experimental, da moda de viola ao sertanejo universitário, do jazz ao forró, do samba ao pagode, em Paraisópolis o que não falta é gente talentosa em atividade musical bem como nos mais diversos campos artísticos.

2022 começou com o pagode romântico de Chris Silva que lançou, no dia 9 janeiro de 2022, pelo selo Matos Records, em parceria com o ::SUL DE MINAS IN CENA::, a canção "Quer ficar comigo". Na sequência, Mayron ZZZ colocou a sua primeira do ano na pista: "Mademoiselle (Prod. Dwnobeat)", assim como a banda Octorama com o single "Pôr do Sol".

Ainda para 2022 devemos ter novidade do FalaFina e do Pedro Bala e os Holofotes. A cantora Viana Souza também é uma aposta da nova geração.

O trem não para! Em 2008, o coletivo de artistas paraisopolenses Clube do Trem, inspirado nos trabalhos do Clube da Esquina, Milton Nascimento e Lô Borges, gravou a canção autoral "Sombra do Arco-íris", e compôs diversas outras canções, que permaneceram na gaveta por mais de uma década, até que em fevereiro deste ano a Matos Records anunciou o lançamento de canções inéditas do coletivo. Em breve, os paraisopolenses e o mundo poderão ouvir "Cantar e descantar", "O viajante solitário" e o poema "O Trem da Mantiqueira.

Libertários